Wednesday, February 25, 2009

O Carnaval por Luís d'Oliveira Guimarães


CARNAVAL - Nem todos saberão que se chama Carnaval á época que vai do Dia de Reis á Quaresma, convencidos de que o Carnaval é apenas o período de três dias, os chamados dias gordos, domingo, segunda e terça, que antecedem Quarta-Feira de Cinzas, inicio do ciclo quaresmal. Convencionou-se que, no Carnaval, ou. com mais rigor, nos seus três dias grandes; não só se podia foliar á vontade como se podia comer carne á farta (havendo-a), em contraposição com a quadra da Quaresma em que a folia e a carne eram desaconselháveis. A expressão Carnaval parece mesmo ter nascido da expressão «Caro vale» que significa «Adeus á carne». O que importa, porém, mais do que a origem da expressão, é aquilo que ela significa e, a este respeito, creio que podemos estar tranquilos. Poucos, desde criança, deixarão de saber o que o Carnaval é.
Há quem diga que as folias carnavalescas advêm das festas pagãs egípcias; há quem diga que advêm das festas pagãs hebraicas; há quem diga, fundando-se em Suetónio, que advêm das saturnais romanas. Na verdade, Suetónio dá-nos uma descrição das festas romanas em honra de Saturno que bem podia ser a descrição, sob determinados aspectos, das folias carnavalescas que surgiram depois. Mas não falta quem afirme que a origem destas folias remonta a muito maior idade, sendo já celebradas dez mil anos antes de Cristo. Não falta quem vá ainda mais longe e as filie no culto agrário praticado nelas povos primitivos em que, segundo determinados etnógrafos, homens e mulheres mascarados, de faces tisnadas, cobertos de peles e de plumas, se agrupavam em bandos e corriam, de noite, gritando:
- Afastai-vos, demónios! Afastai-vos, demónios!
Se me é lícito expressar uma opinião em assunto tão complexo e tão melindroso, afigura-se-me que o Carnaval (emprego, neste momento, a palavra Carnaval por comodidade de expressão) nasceu com o primeiro homem e com a primeira mulher, isto é, com a humanidade - e há-de existir enquanto houver um homem e uma mulher á superfície da Terra, quer dizer enquanto a humanidade existir. Pode ter variado e variar com o decorrer do tempo; pode mudar de fisionomia e de carácter, de país para país ou, até, de pessoa para pessoa; mas confunde-se tanto com a vida que, frequentes vezes, dificilmente saberemos, ante o que nos rodeia, se é a vida na sua realidade, se é o Carnaval na sua fantasia .
- Que diferença há entre o Carnava1 e a vida? - perguntaram, uma vez, ao político e escritor, conselheiro António Cabral, em Terça-Feira Gorda, à porta da Havaneza, enquanto grupos de mascarados subiam e desciam o Chiado.
António Cabral, que era, sob um aspecto aparentemente austero, um homem de espírito (ou não fosse ele, quando estudante de Direito, o autor de uma das mais célebres revistas do 5º ano - «ó Fabia que Foste Fabia» - levadas á cena em Coimbra!) , respondeu ao mesmo tempo grave e irónico:
- Confesso que não lhe vejo diferença nenhuma. Eu, por exemplo, todos os dias me mascaro, de sobrecasaca e chapéu alto, quando vou para São Bento!
A máscara é um elemento indispensável ao Carnaval, especificamente ao Carnaval da Vida. Li, uma vez, que cada um dos três mundos - o mundo antigo, o mundo medieval e o mundo moderno - tinha criado a sua máscara. A máscara do mundo antigo era de argila: a do mundo medieval de ferro; a do mundo moderno de veludo. Na Antiguidade Clássica, o homem, querendo reproduzir a face terrivel das divindades que ele próprio imaginara, inventara a máscara de barro. Na Idade Média, o cavaleiro viu em si a encarnação da força, da honra e da justiça é para que a força, a honra e a justiça fossem invencíveis, revestira-se de armas reluzentes - e moldara a máscara de ferro. Na Idade Moderna, perdendo a fé nas divindades e preferindo a dissimulação á franqueza, a mentira á verdade, a sombra á luz - recortara a máscara de veludo. Foi certamente assim. Simplesmente, nós não estamos já no mundo antigo, não estamos já no mundo medieval, não estamos Já, sequer, no mundo moderno estamos no mundo ultramoderno e, à semelhança do que aconteceu outrora, o homem do nosso tempo, não podia deixar de ter a sua máscara própria - e fez a máscara de papelão. Se a máscara constitui o símbolo da época em que surge, - a máscara de papelão, frágil, vulnerável, diversa, mas caricatural na sua expressão e no seu colorido, constitui, de algum modo, o símbolo da nossa época. Vende-se em qualquer tabacaria. Apresenta as mais variadas faces, á escolha do comprador. Põe-se e tira-se com maior facilidade do que se faz o nó da gravata. Não será a máscara ideal, mas é, no Mundo em que vivemos, a máscara que se usa...
/…/ Em Portugal, à semelhança de muitos outros países, a despeito do Carnaval da vida. piora todo o ano, as chamadas folias carnavalescas, sempre se efectuaram com mais ou menos fulgor, através dos séculos. Proclamada a independência por D. Afonso Henriques, passou a haver as folias carnavalescas nacionais. Realeza, nobreza e povo, muitas vezes divergentes, associaram-se para os mesmos objectivos: consagrar o Carnaval. O próprio clero integrou o Carnaval no seu calendário liturgico. Julgou-se mesmo conveniente que as folias carnavalescas nacionais tivessem um rei privativo - e proclamou-se o rei David. Gerações e gerações o conheceram com as suas barbas de estopa, a sua coroa doirada na cabeça, a sua lira na mão. Não havia folia sem o rei David. Diz-se que as folias carnavalescas já não são o que eram dantes. Não posso testemunhar o que foram os folguedos de Carnaval através dos nossos séculos de história; mas posso testemunhar o que eram esses folguedos nas primeiras décadas da minha existência, nas ruas, nos teatros, nas colectividades, nas próprias casas particulares, pelo menos em Lisboa. Ainda me lembro bem, desses folguedos que animavam a cidade durante, os três dias gordos. Hoje, o Carnaval popular já não assenta arraiais em Lisboa. Quem quiser ver um ar da sua graça, tem de ir a uma das nossas cidades ou vilas da província. Em Lisboa já não o encontra - a não ser por mero acaso. As suas figuras populares características desapareceram daqui. Festejam o Carnaval fora. Disseram-me que vivia ainda, em Lisboa, um xexé que eu conheci, no Chiado, nos meus tempos de rapaz. Pensei que daria uma entrevista. Indaguei a morada. procurei-o. Recebeu-me atenciosamente, numa velha cadeira, de estofo esgarçado (donde já não se levantava senão a muito custo), enfiado na sua velha casaca de cores, tendo a seu lado um bastão ornado do clássico chavelho a que se amparava para conseguir dar uns passos.
- Então o que o traz por cá? - perguntou-me.
- Entrevistá-lo.
- Ah, meu amigo. Estou muito velho. Já não saio de casa. O que sei é o que leio nos jornais, ouço na rádio e vejo na televisão. Não falo com ninguém. Mas a entrevista era sobre quê?
- Sobre o Carnaval.
O velho xexé estremeceu na cadeira, fitou·me através da sua luneta de um vidro só e respondeu-me:
- Desculpe. Mas de política jurei não falar...
E a entrevista ficou no tinteiro.
(in Segredos a toda a Gente de 21/2/1982)

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